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Entre peregrinos e turistas


Quem já leu algo do famoso sociólogo polonês Zygmunt Bauman provavelmente foi surpreendido por uma visão perspicaz do espírito da nossa época. Uma de suas visões mais correntes encontra-se no livro O Mal-estar da Pós-modernidade, onde o autor contrasta a autopercepção e objetivos na modernidade e na pós-modernidade no Ocidente. Bauman descreve o arquétipo da modernidade como o peregrino. O indivíduo moderno crê no progresso da história rumo a uma civilização ideal. Mas ele acredita que pode, e deve, ser parte desse processo. É curioso lembrar que a palavra “civilização” deriva do latim civitas (cidade) e civile (civil ou habitante). Civilizações, então, são cidades produzidas pelo empenho de seus moradores. As experiências e encontros do peregrino são avaliadas em como auxiliam ou impedem a construção dessa cidade.

Já na Pós-modernidade, o script muda. O desencanto com as metanarrativas, ou seja, com as grandes narrativas explicativas da história, especialmente no pós-Segunda Guerra Mundial, trouxe um senso de fluidez à identidade humana. Isso teria dificultado a existência de ideais socioculturais estáticos. Assim, Bauman vê o surgimento do turista. Turistas evitam planos definidos, priorizando a jornada, não o destino. Eles são seletivos com sua “bolha”, relacionando-se intensamente, mas sempre preparados para levantar acampamento. Em suma, turistas se sentem no controle. Se há o tédio, há também a opção de retornar ao hotel, ou partir para outra cidade. Ao contrário do peregrino, o turista avalia suas experiências e relacionamentos em como e o quanto esses podem entretê-lo. Pessoas são mais peças do cenário do que elementos com rosto ou identidade. Contudo, tanto peregrinos quanto turistas vivem em constante ansiedade; seja de alcançar a cidade idealizada, ou de perpetuar o autoentretenimento.

Obviamente, a ansiedade presente entre estes dois arquétipos ganha diferentes expressões em contextos específicos. Em terras brasileiras, por exemplo, o comportamento de peregrinos e turistas é imerso na conhecida “Lei de Gérson”. Se há um modo de avançar ou entreter-se na jornada, deve haver outro mais vantajoso, mais barato e menos doloroso de fazê-lo, ainda que às custas de outros viajantes ao redor. Assim, o clima de competitividade, exploração e até de predação torna-se perceptível no ato de uma compra, num escritório ou no engarrafamento.

Interessante notar que as Escrituras também utilizam constantemente o modelo de pessoas em jornadas, mas a perspectiva bíblica não é a mesma de Bauman. Nem evolução autônoma, nem entretenimento à deriva. O exemplo clássico é Abraão, que atendeu ao chamado de Deus para sair do seu lugar, “embora não soubesse para onde estava indo” (Heb. 11:8). Para o mundo antigo, o desterro era sinônimo de exposição máxima à vulnerabilidade. Abraão, conforme notado no Livro de Gênesis, tinha boas condições. Abandonar a cidade de seu pai significava deixar escorrer entre os dedos o potencial como empreendedor produtivo em Ur, sua terra natal, para ser um estrangeiro com prospectos mínimos em Canaã, seu desconhecido destino.

O paradoxo em Abraão é reforçado, pois seu chamado ocorre logo após Babel – a cidade-torre construída pelos homens na Mesopotâmia para alcançar os céus e dar-lhes certa autonomia espacial – em Gênesis. Os contrastes literários são muitos: os homens de Babel buscavam segurança na escolha e no estabelecimento de uma cidade definida. Abraão, por sua vez, deveria abandonar a segurança de sua terra, indo para uma terra indefinida que não escolheu. Um grande nome é prometido a Abraão. Babel desejava construir um nome para si. Abraão parte em obediência à ordem divina “saia” (Gen. 12:1). Os construtores de Babel ficam em desafio ao mandamento “espalhem-se” (Gen. 11:7). Ironicamente, a restauração de Babel e de outras nações não viria através de empreitadas civis, mas do desterro de Abraão somado à esterilidade de Sara. Mais ainda, no argumento do Livro de Hebreus, o patriarca é um paradigma da jornada de fé distinta que Cristo e seus seguidores trilham rumo à cidade prometida – Nova Jerusalém. Isso, contudo, não implica necessariamente um retorno aos “bons tempos” dos peregrinos modernos. Estes são guiados pela autonomia humana e, portanto, estão mais próximos de Babel do que de Abraão.

Na visão cristã, entretanto, a Nova Jerusalém desce do alto rumo à terra, não é erguida do chão até os céus. Aquele que vê sua identidade “escondida com Cristo em Deus” (Col. 3:3) abandona a agenda de autoconstrução, seja numa utopia ou num destino turístico. Se não tenho o papel de estabelecer uma cidade e a minha identidade, ninguém será meramente avaliado como complemento ou impedimento ao meu projeto – afinal, esse nunca dependerá meramente de esforços humanos para acontecer. Passo, assim, a ver no outro uma pessoa com labirintos, erros e ambiguidades, mas ainda assim feita à imagem de Deus. Igualmente, a ‘Lei de Gérson’, de sempre levar vantagem sobre os outros, passa a fazer ainda menos sentido. Ando entre peregrinos e turistas diariamente, e cada um deles merece ser ouvido e também ouvir que há outra vida fora de Babel.


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