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O que você vai ser quando crescer?


“Eles largaram o trabalho convencional para fazer o que realmente amam.” Títulos e chamadas dessa natureza para matérias ou depoimentos em sites, revistas e jornais estão bastante comuns. Quase todo mundo já leu uma história de mudança dessas. O enredo é claro e previsível. O(A) protagonista, infeliz com a vida que está levando, decide deixar um emprego que já não o(a) satisfaz para se dedicar ao que o coração parece estar pedindo. Com a dose apropriada de perseverança (e, às vezes, parece que basta este ingrediente) essas pessoas passam a ter felicidade sem fim e um sucesso estonteante, quase constrangedor para nós, leitores das suas sagas. Tomar conhecimento dessas guinadas tão incríveis, em geral, causa mais ansiedade do que inspiração. A inevitável comparação surge instintivamente e agulha a alma: “Mas e eu, quem sou? O que eu devo fazer da minha vida?” Responder satisfatoriamente estas perguntas não é tarefa fácil, exige reflexão. Porém, não é um processo para ser encarado totalmente no escuro. A tradição bíblica, inclusive, pode ajudar a lançar alguma luz sobre o assunto.

Vocação é geralmente a palavra usada para descrever, e até justificar, essas histórias de mudanças profissionais. É normal tomar a ideia de que aquilo que “você nasceu pra fazer” é a sua vocação. Não é incomum a confusão de vocação com carreira; e desta última com emprego. Talvez a primeira coisa importante sobre esse tema seja descobrir de onde a vocação vem. O termo é derivado da palavra latina vocare, que significa “dar nome” ou “chamar.” Surge, então, a primeira conclusão: se alguém é chamado pra fazer algo, é porque existe alguém chamando. Segundo a fé bíblica, a pessoa quem chama é o próprio Deus, o Criador de todas as coisas.

No livro de Gênesis, Deus decide criar a humanidade como parceira no cultivo do mundo criado (Gen. 1:1–2:25). A atividade humana é tanto uma resposta à necessidade de atender às necessidades externas e trazer ordem ao caos, quanto uma forma de expressão das características intrínsecas da vida de cada um –personalidade, contexto familiar, cosmovisão. Acontece que tanto as necessidades do mundo quanto o contexto em que se está inserido ao nascer estão além do poder de decisão até do mais perseverante dos seres humanos. A conclusão subsequente a esse fato pode ser chocante, mas é preciso encará-la mesmo assim: a cada vez mais repetida afirmação de que “você pode ser o que quiser na vida” é um engodo, uma isca para uma armadilha, uma mentira. Vocação não é escolha, é descoberta.

Ainda de acordo com a fé bíblica, o chamado primário do Criador não é para “fazer” algo que ele quer que seja feito, mas para “ser” o alguém que ele nos criou para sermos – parceiros e corregentes no mundo. A vocação é mais ligada à transformação do caráter do que às atividades desempenhadas. A consequência que emerge naturalmente dessa definição é que a vocação pode ter inúmeras expressões, não necessariamente representadas pela carreira profissional. Não é preciso ser pago por uma atividade para poder reconhecê-la como uma expressão vocacional. Mães, pais, vizinhos, cidadãos, amigos, líderes comunitários e até os colegas do futebol estão plenamente aptos a expressar suas vocações de cooperadores do Criador nos papéis que desempenham.

Para os seguidores de Jesus de Nazaré, portanto, vocação é um convite para participar das ações criadoras, redentoras e providenciais de Deus. Por algum motivo, Deus escolheu revelar-se por meio da história e isso significa que pessoas, lugares e datas importam. Esse convite desenvolve-se na vida de indivíduos com nome, e em tempos e lugares específicos. Dessa forma, não existe “vocação genérica.” Cada um é chamado a servir onde está e com o que tem. Por isso, ser vocacionado é muito mais do que uma carreira ou emprego. Aqueles que se apoiam na esperança de encontrar sua identidade única e exclusivamente no trabalho correm um altíssimo risco de frustrarem-se e, pior ainda, viverem uma vida vazia e sem sentido. Vocação nenhuma cabe dentro de uma carreira.

Descobrir seu chamado exige considerar quem chama e mais um esforço de discernimento para ouvir a voz do Bom Pastor em meio a tantas outras vozes. Significa a transformação do caráter à semelhança do de quem está chamando. Essencialmente, os cristãos são chamados ao serviço e ao sacrifício. Só dessa maneira eles são capazes de largar tudo, não para viver os próprios sonhos, mas os planos daquele que os chamou. Assim, a mudança radical em direção ao que julgamos amar – conforme propagada pelos consultores de carreiras e jornalistas da área – nem sempre é consequência de sabedoria vocacional. Em muitos casos, apenas denuncia nossa insatisfação com o lugar onde estamos, nossa incapacidade de compreender para o que fomos chamados e, em suma, nossa rebelião contra aquele quem chama. Quando perguntados, “O que você vai ser quando crescer?”, os cristãos apontam suas lentes para ao futuro e respondem: “eu serei como Jesus.”


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