O aborto e a verdadeira religião

É fácil se perder em meio às discussões complexas. Não só as opiniões sobre assuntos polêmicos são diversas e, não raro, polarizadas, mas as causas que as motivam também são variadas e delicadas. A discussão sobre o aborto não seria exceção. Por este motivo, aqui vale mais discutir como cristãos devem lidar com tal situação de forma prática. Há ocasião para discutir as causas, motivações e implicações do aborto, mas opta-se aqui por um chamado à ação. Assim nós seremos reconhecidos também pelos frutos, e não apenas pela verborragia.
A epístola de Tiago é um dos livros mais pragmáticos de toda a Bíblia. Ele estava tão interessado em entender o que significa viver o cristianismo na prática que acabou por deixar personalidades mais teóricas constrangidas. “Mostre-me sua fé sem obras, e eu lhe mostrarei a minha fé pelas obras!” (Tg. 2:18b). Tamanho pragmatismo levou até mesmo Martinho Lutero a chamar este livro – por uma suposta falta de argumento teológico – de “a carta de palha”. A infelicidade do reformador em sua afirmação só ressalta que o cristianismo não é uma religião do intelecto apenas, mas também do coração e das mãos.
Em Tiago também lemos que a “religião que Deus, nosso pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo” (1:27). A afirmação é tão direta que ficamos sem graça. E tal como o especialista na lei que questionou Jesus (Lc.10:29) – “Quem é o meu próximo?” – fazemos pergunta semelhante: “Quem são estes órfãos e estas viúvas?” Ainda que válida, essa é uma pergunta de resposta óbvia.
Órfãos são crianças sem um dos pais. Viúvas são mulheres que perderam o marido.
Estas categorias parecem um tanto estritas, mas tem razão de ser. O Deus imutável dissera em Êxodo 22:22-23 que Ele “certamente atenderá ao clamor” das viúvas e dos órfãos. Em Deuteronômio 10:18, Ele é quem “defende a causa do órfão e da viúva”. No Salmo 68:5, é “Pai de órfãos e defensor de viúvas”. Tiago, juntamente com os demais autores do Novo Testamento, olha para o Antigo Testamento e vê o Deus que é o mesmo ontem, hoje, e sempre. E este Deus sempre protegeu a causa dos órfãos e das viúvas.
Olhando para trás, nós também podemos ver como o cuidado com os órfãos e as viúvas foi fundamental na expansão do cristianismo. O sociólogo da Universidade de Washington, em Seattle, Rodney Stark, demonstra no seu excelente livro O Crescimento do Cristianismo como a fé cristã avançou rapidamente em meio a uma sociedade que abertamente permitia o aborto e o infanticídio, e na qual mulheres eram moeda de troca para ascensão social. Eram justamente os cristãos que resgatavam os pequeninos abandonados à própria sorte. E também acolhiam as mulheres abandonadas por seus maridos. Não à toa, o cristianismo cresceu à revelia das perseguições, pois quem se importa com órfãos e viúvas? Certamente não ia de ser Roma (e que o leitor nos entenda).
Note que não se trata de paternalismo. Em uma sociedade como a do antigo Israel ou a Roma no primeiro século, o sustento das mulheres e das crianças dependia quase que exclusivamente do homem. Destaca-se que o trabalho na roça é duro, as feras estão soltas no campo, a água fica no fundo do poço, e os ladrões espreitam nas estradas. Que esperança de subsistência tem uma gestante sozinha numa realidade dessas?
Agora cabe-nos perguntar: e que esperança tem uma gestante em um mundo como o nosso? A maioria não trabalha na roça, as feras foram expulsas da cidade, a água foi encanada, contudo, os ladrões ainda espreitam. Que esperança elas tem num mercado de trabalho que devora assalariados ou numa cultura que despreza quem nega a si mesmo em favor do outro? E numa sociedade que coloca expectativas tão altas em tudo, inclusive na maternidade? E o que dizer sobre aquelas que vivem tudo isso em meio a condições de pobreza? Sem ajuda, as chances de sucesso são quase sempre mais baixas.
Não há, em sã consciência, quem deseje abortar por abortar. O ser humano são não acha que a morte – esta intrusa! – é uma solução adequada para qualquer problema. Como não podemos aceitar a morte como uma saída (afinal, fazê-lo seria deixar-se corromper pelo mundo), precisamos reconhecer que muitas mulheres que cogitam o aborto estão realmente em situação fragilizada. E não só pela gravidez em si, mas também porque muitas vezes estão desamparadas pelo pai da criança. Mães e filhos são, portanto, viúvas e órfãos de fato. E, de acordo com Tiago, cuidar destas viúvas e destes órfãos é a religião pura e imaculada.
Assim, como Igreja de Cristo, não devemos apenas falar em nome delas na esfera pública. Devemos também abrir os corações para sentir a dor dessas mulheres. E devemos abrir os braços para recebê-las em nosso meio, cuidando delas em suas dificuldades. Não é tempo de julgamento, mas de chorar e se arrepender, clamando a Deus por misericórdia em nome das viúvas e dos órfãos. Ele certamente ouvirá. Prometeu isso. E, se formos capazes de abrir nossos corações e braços tantas vezes quanto abrimos nossas bocas, certamente haverá quem nos ouça também neste mundo.

Pai e marido, o paulistano Lucas Freitas é advogado e cursa no Regent College o Master of Arts com concentração em Novo Testamento. Prepara-se para o ministério pastoral.