Jesus 'commodity'

O filósofo e colunista da Folha de S. Paulo, Luiz Felipe Pondé, notou em sua coluna de 26/05/14 (Jesus can’t be boring) como a figura de Jesus, entre outros símbolos religiosos, tornou-se uma 'commodity’ consumível. As religiões presentes no Brasil, sob o dilema da sobrevivência no carrossel de pluralidade e narcisismo ocidentais, deixaram-se reduzir a “bens de consumo tratados via ferramentas de marketing, num mercado de comportamentos em que elas devem competir entre si e com as opções seculares”. Tal visão por vezes transparece nos comentários de colegas e familiares que resolveram buscar alguma experiência religiosa nova, porque a anterior “não estava dando resultado” ou porque “fulano testou e gostou”. E ainda há aqueles que negam a certeza de qualquer uma delas, pois “nenhuma convenceu totalmente, embora respeite a todas”. No fundo, é um jogo de conquista baseado no desejo e no retorno.
A partir desta tendência de ‘fé de consumo’, são possíveis duas proposições: uma verdadeira e uma falsa. A verdadeira afirma a realidade e a necessidade do transcendente. É um grito contemporâneo contra as lentes antiteístas, como as de Marx e Freud, que nunca resolveram de fato a questão do anseio pelo inexplicável, pelo simbólico ou pela experiência de algo para além de si próprio (self). O hiper-humanismo do fim do século XIX, com seus imensos avanços tecnológicos, trouxe mais ansiedade e hostilidade do que descanso. O teólogo jesuíta e cardeal francês Henri de Lubac vaticinou: “O homem não consegue organizar o mundo para si mesmo sem Deus; sem Deus, ele pode apenas organizar o mundo contra o homem. Humanismo exclusivo é um humanismo desumano.” Ao negar esse hiper-humanismo, o renascimento do transcendente busca enxergar o mundo como translúcido (outra realidade é perceptível) ao invés de opaco (tudo o que há pra ser visto é matéria).
A proposição falsa, por outro lado, alega que a busca pelo transcendente é possível, porém, seria um projeto sob controle humano. Essa é a falha na religiosidade moderna. Ela reagiu a princípios hiper-humanistas mantendo uma parcela desse humanismo. A busca por sentido e uma vida considerada digna é vindicada pela autorrealização. Manipula-se a fé para o proveito próprio como se faria com um aplicativo de smartphone. Mesmo entre cristãos vê-se o perigo de considerar Jesus como um fornecedor da fatia da vida chamada espiritualidade, que, contudo, não afeta as esferas profissional, afetiva ou estética. O sociólogo e professor de Estudos Interdisciplinares no Regent College, Craig M. Gay, define tal estilo de vida e fé como "ateísmo prático". Se Deus existe, Ele é, contudo, desimportante para a maior parte da vida prática. Inevitavelmente, o resultado é uma fé fragmentada e ansiosa por manter-se em funcionamento, um fardo que produz uma humanidade mais achatada do que florescente. E aqui ecoa-se Henri de Lubac: uma religiosidade 'commoditizada' é, em última análise, desumana e autofágica.
Esse foi o erro de um mago chamado Simão, narrado no capítulo 8 do Livro de Atos. Simão confundiu a mensagem de Jesus com as antigas religiões de mistério. Se os apóstolos podiam trazer o Espírito Santo, a técnica poderia ser comprada, aprendida e manipulada. No entanto, os apóstolos Pedro e João conheciam um Cristo que recusara ser um rei limitado às aspirações humanas, como contado no Evangelho de João (6:15), já que isso nunca o levaria ao cerne da sua missão: a cruz.
Em termos de marketing, produtividade e commodity como definidos hoje, Cristo foi um desastre. Basta-nos notar o destino dos apóstolos e de muitos cristãos dos primeiros séculos. Entretanto, a recusa de Jesus pelo modelo mercadológico trazia uma contraproposta: indivíduos abandonam suas próprias agendas, a fim de estarem junto dele, aprendendo com ele, sendo enviados por ele e desfrutando da autoridade que há nele (Marcos 3:13-14). Todo programa de construção narcisista de espiritualidade e do self desmorona no relacionamento com Cristo e seus discípulos. Se Jesus é Senhor sobre todas as esferas da vida – do cafezinho à Santa Ceia – não há fragmentação possível, e o transcendente invade o dia a dia.
Segui-lo não é aderir a uma marca ou adquirir uma mercadoria. Mas implica em cancelamento de uma agenda que gira em torno de interesses pessoais e na abertura para a do próprio Jesus, e na companhia daqueles que ele mesmo quis chamar. Nossa identidade é esculpida por talhadeiras que nunca escolheríamos. O cristianismo, portanto, jamais estaria submetido a tal tipo de reducionismo mercadológico, já que a narrativa cristã requer que submetamo-nos a um Deus que se recusa a ser manipulado como um ídolo ou consumido como técnica religiosa. Aslam – o leão das Crônicas de Nárnia – não é um leão domesticado, escreveu C. S. Lewis. Nem tampouco é Cristo.