O Sábado como resposta a um mundo incessante

Para aqueles criados em ambientes de herança judaico-cristã, o termo ‘sabático’ talvez já fosse conhecido. Agora, a prática tem ganhado força fora dos círculos declaradamente religiosos. Várias figuras públicas estão flertando com a ideia de um ano sabático. O apresentador Jô Soares, a atriz Camila Pitanga, o técnico Cuca anunciaram pausas profissionais em 2017. Até mesmo programas de TV tem reproduzido o conceito. O Porta Afora – programa de viagens do canal humorístico Porta dos Fundos – gravou um episódio inteiro para justificar seu próprio ano sabático, descrevendo a decisão como um ato de coragem, de intenções bem claras: “uma pausa prolongada, sair de uma rotina que parou de fazer sentido, se redescobrir e reinventar”. A prática também tem sido abraçada, especialmente no exterior, há pelo menos cem anos, por professores universitários e altos executivos. No Brasil, o sabático tornou-se mais comum nos últimos anos, mas ainda é advogada por poucos.
Entre as diversas vozes que surgem, dois elementos comuns podem ser observados. Primeiro, período sabático é diferente de férias. A última tem como função aliviar a tensão, simplesmente descansar e ter tempo de lazer, de modo a retornar ao trabalho em melhores condições físicas e emocionais. É o princípio aristotélico de recobrar as forças para maiores e melhores resultados futuros na mesma função. Já o sabático é descrito como uma desconexão maior. A pausa de um dia ou uma semana não basta. São necessários pelo menos alguns meses. Nesse tempo, não há a intenção de ‘recarregar-se’, mas de redescobrir-se e replanejar. Alguns sugerem mudança de cidade, e até peregrinações sem rumo, como a retratada no filme Comer, Rezar, Amar (2010). O cerne é parar, respirar e avaliar o curso da vida, algo que uma rotina pesada de trabalho impede. Fora do olho do furacão há tempo para grandiosas perguntas: Estou fazendo algo que considero relevante? Estou dando a prioridade devida ao que entendo como meus valores? Com o que tenho passado, que tipo de pessoa consigo perceber que sou? Quais as outras possibilidades ao meu alcance? O segundo ponto pacífico é a intenção de um retorno, seja para onde for. Depois da experiência sabática, o mundo real ainda aguarda. No entanto, muitos empregadores ainda torcem o nariz para pedidos de sabáticos e não há garantia de um emprego na volta. Logo, é preciso planejamento. Reservas financeiras devem ser estocadas para o tempo sem salário. Em todo o caso, em geral os que experimentaram garantem que o sabático é fonte de satisfação e renovação das perspectivas.
Ainda que atraente e com possibilidades bem positivas, a ideia de período sabático no mundo corporativo difere bastante da tradição bíblica de sua origem. Talvez, a mais visível seja que apenas altos cargos na pirâmide empresarial tenham acesso a essa pausa. Segundo o CEO da consultoria de carreiras LHH/DBM na América Latina, José Augusto Figueiredo, para sair em um sabático, antes “o profissional precisa já ter construído uma boa reputação naquilo que faz, ter uma grande rede de relacionamentos que o apoie, além de um patrimônio de bens”. Em contraste, a mensagem bíblica é que Deus ofereceu o Shabat como um privilégio comandado a todo o povo: homens, mulheres, crianças, escravos, estrangeiros, e mesmo aos animais (Êxodo 20:8-11). No ano sabático, até a terra recebia repouso (Levítico 25:4). O entendimento de descanso em Israel era revolucionário exatamente por ser uma dádiva que eliminava quaisquer hierarquias sociais. Outros povos antigos conheciam o repouso e o ócio recreativo, mas esta era uma prerrogativa de reis, sacerdotes e homens livres. Escravos, e em muitos casos, as mulheres, não conheciam alívio de seu labor. No mundo empresarial brasileiro, infelizmente, o Shabat chegou com o nome hebraico, mas com a ideologia dos egípcios e gregos. O descanso prolongado tornou-se a glória dos grandes somente, não o gracioso repouso vindo do “Deus que te tirou do Egito, da terra da escravidão”.
A distância entre o sabático bíblico e o corporativo aumenta quando seus objetivos são explorados. Enquanto o último busca novos horizontes por meio da reflexão, o Shabat de Israel estava primordialmente interessado em recordar. Recordar o Deus que havia criado o mundo em seis dias e descansara no sétimo (Êxodo 20:11), e recordar que o povo havia sido escravo no Egito mas havia sido liberto por Deus (Deuteronômio 5:15). A comunidade enxergava-se na narrativa dos atos poderosos de Deus, e assim tinha certeza de que Ele estaria com eles mesmo quando não houvesse esforço por produção. A autoanálise do sabático moderno é solitária e egoísta. Ao esvaziar o caráter sagrado do Shabat, os profissionais tendem a reproduzir uma versão estendida e zen das férias. Com algum progresso e discernimento? Possivelmente, mas sob exclusivo controle humano, sem qualquer expectativa de cuidado divino.
Em suma, para a tradição judaico-cristã, o sabático é um tempo de encontro com Deus para reorganizar nossa visão ao lado dEle. Como o filósofo judeu Abraham Heschel colocou, o Shabat é “um santuário no tempo”. Ao mesmo tempo, o descanso torna-se um ato de resistência dentro de uma sociedade que insiste que produzir é nosso alvo e nossa única segurança de sobrevivência. Apenas quem cessa o trabalho consegue relembrar que Deus é infinito e nós não – por mais que nosso desejo por produtividade e controle do tempo nos dê essa ilusão. No confiante cessar do Sábado conhecemos quem de fato nos alimenta e veste.