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Uma política da boa vizinhança em dez palavras


A sociedade contemporânea celebra diversidade, prega amor e tolerância, mas ainda apresenta dificuldades em lidar com as mais variadas diferenças. Temos consciência dos problemas globais, mas não sabemos nos relacionar com a pessoa do outro lado da rua (ou da tela do computador). A facilidade com que rotulamos depreciativamente quem discorda de nós demonstra que ainda carecemos de uma política da boa vizinhança consistente, semelhante a do Decálogo – “Dez palavras” – mais conhecido como os “Dez Mandamentos” registrados nos textos de Êxodo 20 e Deuteronômio 5.

Usar um texto antigo, associado à tradição judaico-cristã, para orientar uma sociedade plural pode soar bizarro. Contudo, a Torá – “Lei” ou “Instrução” em hebraico – surgiu num contexto não tão diferente do nosso e tinha a intenção de organizar a vida social de Israel na sua integralidade. O decálogo não é “lei” num sentido técnico, mas um desdobramento – em duas tábuas – de duas máximas da própria Torá: “Ame a Deus sobre todas as coisas” e “Ame o seu próximo como a si mesmo”. Assim, de acordo com a “segunda tábua” – que engloba as “palavras” de 5 a 10 – amar o próximo não é mero sentimentalismo; mas respeitar, e não matar, trair, roubar, ou caluniar. Até porque, ninguém quer ser vítima destas coisas. Curiosamente, a décima palavra “não cobiçarás” não se refere a um ato externo, mas sim, ao nosso caráter; confrontando nosso egoísmo, raiva, impulsos sexuais, ganância e desonestidade. Afinal, ser um bom vizinho vai muito além de seguir regras. Tem a ver com a nossa formação quanto pessoa.

Como a “primeira tábua” trata do amor a Deus, vale perguntar como ela também beneficia o meu próximo. A “primeira palavra” (Não terás outros deuses) propõe uma lealdade exclusiva a Deus, não por Ele ser carente ou inseguro, mas porque quer ser visto e tratado da mesma forma como Ele vê e trata a cada ser humano na sua singularidade. Cada um de nós lhe é conhecido por nome e é alvo do seu amor e cuidado. Seguir esta palavra estabelece o padrão fundamental do que significa amar alguém. Pois ao deixarmos de ver Deus como uma projeção humana, e passarmos a considerar sua singularidade, estamos aprendendo a respeitar e amar nosso próximo, feito à Sua imagem – seja ele nosso cônjuge, colega de trabalho, vizinho, ou um mala-sem-alça qualquer. Tratar cada pessoa, não importa quem seja ou o que tenha feito, com consciência do seu valor insubstituível devido a sua dignidade inerente faz de nós vizinhos melhores.

A “segunda palavra” do Decálogo (Não farás para ti ídolo) adverte-nos sobre fazer um ídolo ou uma imagem de Deus. Não se trata de coibir a expressão artística, mas a tendência de pormos Deus numa representação material, confinando-O nos nossos valores e ideais e injetando nEle nossas preferências. Amar uma representação de Deus é semelhante a relacionar-se com uma foto dos nossos queridos, em vez de visitá-los pessoalmente. Além disso, o próprio Deus já fez uma imagem de si: a humanidade. Por isso, a idolatria – seja por super ou subvalorização – também objetifica o ser humano. É mais fácil relacionar-se com uma idealização do nosso próximo, em vez de com quem ele realmente é.

A “terceira palavra” (Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão) vai além de proibir irreverências corriqueiras. Na cultura hebraica, nome é também uma referência à reputação de alguém. O de Deus não pode ser desconectado da sua pessoa, presença ou poder, e, por isso, seu nome é profanado quando utilizado para conferir credibilidade ou promover projeto meramente humano, seja ele pessoal, religioso ou político. Pior, Deus é instrumentalizado, tornando-se assim ferramenta retórica em prol de uma nossa causa que não é dEle. Se em vez de usar Deus para manipular nosso próximo e atingirmos nossos objetivos, manifestarmos nossas preferências através de uma postura humilde, agindo em nosso próprio nome, assumindo nossas escolhas e erros nosso semelhante será mais feliz.

Seguindo a mesma linha, a “quarta palavra” (Lembra-te do dia do Sábado), antes de ser sobre descanso, é sobre trabalho – aquela parte da natureza humana que nos move a agir, criar, organizar e empreender. É também uma forma de amarmos nosso próximo, fornecendo bens e prestando serviços de qualidade. À semelhança de Deus, contribuímos com o bem-comum por seis dias de trabalho duro e criativo. No sétimo dia Deus poderia ter feito algo, mas escolheu pausar, demonstrando que existe sentido fora das agendas cheias e da produtividade. O trabalho, quando não honra os limites do tempo e do espaço, torna-se opressor, nocivo, deprimente e desumanizante. O Sábado, cujo sentido etimológico é “descanso”, não é somente questão religiosa, mas também social e ecológica. Não apenas o chefe, mas todos têm direito e a responsabilidade de descansar semanalmente. Portanto, zele pelo seu próprio descanso – workaholics são péssima companhia –, mas também garanta o descanso alheio.

A proposta é simples: resgatar o espírito do Decálogo com intuito de que respeite-se a dignidade alheia, enxergue-se uma pessoa além do seu estereótipo, adote-se uma postura humilde e tenha-se uma vida coerente e equilibrada. Tudo isso pode parecer uma soma de obviedades mais conservadorismo religioso. Contudo, essas instruções diretas e por vezes simples não são unanimemente praticadas nem mesmo por adeptos da tradição judaico-cristã. Isso não invalida a proposta, apenas confirma que para sermos e termos bons vizinhos, há necessidade de desenvolvimento do caráter de todos nós.


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