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'A vida é trem-bala, parceiro'


Além do famoso 1968, os brasileiros aprenderam a também chamar 2016 de “o ano que não acabou”. O pessimismo – fundado ou não – deu o tom da toada num ano de confusão política e ressaca econômica. Quem esteve no exterior durante esse interminável ano pôde perceber, “de fora” e mais agudamente, esse incaracterístico pessimismo nacional. Afinal, essa “minha gente” há décadas “canta, canta” com Martinho da Vila que “a vida vai melhorar”, e também guarda uma fé resiliente nos versos de Gonzaguinha de que a vida, que “devia ser bem melhor” – no futuro –, “será”. Mas basta estar fora do Brasil para receber aconselhamentos – uns bem amargos; outros, claramente exagerados – do tipo “não volte pra cá”, “fique aí”, “nada aqui presta”. Tamanha depressão fez alguém chegar a justificar seu conselho sobre uma decisão de gigantesca importância dizendo até que o asfalto estrangeiro é melhor que o brasileiro e, logo, danifica menos os carros.

Apresentando o seu recente Trópicos Utópicos, o economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca sugere que essa lógica de ciclos de altos e baixos é um aspecto criticável, porém, comum do nosso imaginário. Para Giannetti, a imaginação brasileira flutua de maneira excessivamente volátil, e vamos rapidamente da embriaguez eufórica à depressão que arrasa. De fato, se afastamos as lentes para enxergar o caminho que trilhamos nas últimas duas décadas, não é difícil perceber que em certo momento tentamos colher todos os frutos do campo, como se depois de uma estação não fosse preciso preparar a próxima. Agora, para muitos, os campos são vales de ossos secos e não há trabalho possível que possibilite colheita futura. Essa flutuação toda – que mais salienta nosso estado de deriva – não deixa de atingir o âmago do nosso espírito. Como manter o semblante alegre e o coração esperançoso em meio a uma ‘espiritualidade de Velho do Restelo’ – personagem de Camões em Os Lusíadas, símbolo dos pessimistas e que não acreditava no sucesso português nas Grandes Navegações?

Eis que no apagar das luzes do tal “ano que não acabou” emergiu do imaginário artístico, sob a forma de canção, uma grata surpresa. Ana Vilela e a sua canção Trem-bala dispensam apresentações, pois apareceram como virais na internet e logo alcançaram mais de 20 milhões de visualizações. Seguiram uma lógica na qual por vezes nuances da cultura são percebidas antes pela sensibilidade dos artistas, para só depois serem descritas pelos filósofos, notadas pela imprensa, digeridas pelo grande público e incensadas ou condenadas pelas religiões. A despeito de toda exploração televisiva feita pós-lançamento despretensioso via WhatsApp, o sucesso viral de Trem-bala não indicaria alguma demanda reprimida? De melodia simples e rimas majoritariamente pobres, a letra é, contudo, uma ode ao presente, ao processo, ao caminho e aos relacionamentos da vida.

No livro O que faz o brasil, Brasil?, o antropólogo Roberto DaMatta salienta como a otimista relação com o outro identifica socialmente um brasileiro: “Porque vou à praia para ver e conversar com os amigos, ver as mulheres e tomar sol, jamais para praticar um esporte; (...) porque sei que não existe jamais um ‘não’ para situações formais e que todas admitem um ‘jeitinho’ pela relação pessoal e pela amizade; (...) porque eu sei que existe destino e, no entanto, tenho fé no estudo, na instrução e no futuro do Brasil, porque sou leal a meus amigos e nada posso negar a minha família; porque, finalmente, sei que tenho relações pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste mundo, como fazem os meus amigos americanos, que sempre se veem e existem como indivíduos!” Não é de se estranhar, portanto, que uma letra que fala sobre “ter morada em outros corações; e assim ter amigos contigo em todas as situações” tenha caído no gosto brasileiro. Não temos mesmo vocação para Velho do Restelo.

Giannetti, novamente, crava que nossa cultura de raízes não tão ocidentais tem a virtude de celebrar o doce sentimento da existência independentemente da lógica e da razão científica. Difícil imaginar versos como “A gente não pode ter tudo; Qual seria a graça do mundo se fosse assim?” entoados com lágrimas por pessoas de outras culturas bem mais secularizadas, disciplinadas, modernas e individualizadas que a nossa. Quem, como o profeta israelita Elias, só pensa em fugir e, entorpecido pelo pessimismo, vê-se como o mais solitário dos justos (I Rs. 19:1-18), perde a esperança no próximo ou mesmo a confiança na supervisão e na intervenção divinas. Enfia-se numa caverna e de lá apenas reclama e pede pela abreviação da própria vida. Elias foi, contudo, consolado e animado pela informação de que estava errado; não estava sozinho e outros sete mil eram fiéis como ele. Ana Vilela também fez sucesso por certamente ter animado ouvidos brasileiros fartos de só ouvirem problemas. Seus versos consolam ao fazer de novo emergir da/pra cultura nossos traços sociais mais caros. Se você ouve “Segura teu filho no colo; Sorria e abraça seus pais enquanto estão aqui” e não sente uma avassalador constrangimento por talvez estar desperdiçando a vida, você já morreu e não sabe. Para os que conhecem a recomendação de humildade do apóstolo Tiago diante da vida – por não sabermos o que nos acontecerá amanhã e por sermos como uma ‘neblina’ (Tg. 4:13-14) – ouvir “Que a vida é trem-bala, parceiro; E a gente é só passageiro prestes a partir” é constatar o raro transbordamento da sabedoria e espiritualidade bíblica para a cultura.


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