Cavalo encilhado

Em 2012, o jornalista Alexandre Teixeira publicou um estudo até então inédito no cenário brasileiro sobre felicidade no trabalho. Em Felicidade S.A., Teixeira argumenta que o mundo do trabalho vive uma revolução silenciosa. Aos poucos, algumas empresas brasileiras estão deixando de usar a remuneração como a única fonte de estimulo para seus funcionários e começam a explorar novas ideias para reter seus talentos. O conceito de “senso de propósito” é unânime entre as alternativas; ou seja, quem trabalha deseja que o produto de seu esforço tenha significado. Mas a vida, como se sabe, é uma caixinha de surpresas e o tempo todo somos confrontados por suas agruras, incrustadas nos relacionamentos e estruturas da esfera pública. O mundo do trabalho é na maioria das vezes árido, difícil de entender. O sentimento de deslocamento é constante e o primeiro pensamento que vem às mentes inquietas é o de se estar no lugar errado. Mas o significado do que fazemos pode ficar mais evidente à medida que entendemos o lugar ocupado pelo trabalho em nossas histórias pessoais.
O primeiro passo é descobrir nosso lugar no grande esquema das coisas. O filósofo escocês Alasdair MacIntyre, conhecido por suas contribuições para a filosofia política, afirma que “só podemos responder à pergunta ‘O que devemos fazer?’ se pudermos responder a questão anterior, ‘De que história ou histórias fazemos parte?’” Talvez uma das histórias mais poderosas da cultura vigente é a de que o ser humano pode se reinventar. (Re)invenção tornou-se palavra de ordem numa sociedade já condicionada a consumir. Indivíduos exercem o poder de escolherem quem e o que querem ser a partir da lógica de mercado – compram, vendem e constroem sua identidade adquirindo coisas. A escolha das marcas usadas ou vestidas, os lugares frequentados e as experiências vividas definem o indivíduo por completo. Aliviam-se as dúvidas existenciais enquanto são mantidos os símbolos aceitos por todos ao redor. O efeito, obviamente, não é perene. Vão-se as coisas, vai-se também a identidade. Como contraponto, a tradição judaico-cristã oferece uma narrativa diferente. De acordo com a fé bíblica, seres humanos não obtêm sua identidade das coisas que criam, mas de seu Criador. Homens e mulheres foram feitos à imagem e semelhança de um Deus bom e todo-poderoso, e que mantém as rédeas da história. Nossa identidade, portanto, está segura. Não precisamos consumir para existir. Os impactos desta perspectiva sobre o mundo do trabalho são monumentais: se a função do trabalho não é criar identidade por permitir acesso ao consumo, o indivíduo está livre para procurar sentido para o que faz dentro de uma história maior do que ele mesmo e, assim, a auto-invenção dá lugar à descoberta. Cristãos sabem que fazem parte de uma história maior de redenção, que caminha para um fim, e deveriam entender seu trabalho como uma forma de participar dessa história.
A segunda tarefa é escolher a forma de nos engajarmos com a história. Uma possibilidade é começar com a pergunta: “E se eu estiver no lugar certo?” Se existe um Deus soberano que supervisiona a história, por que não lhe dar um pouco de crédito e partir do pressuposto de que esse é exatamente o lugar em que eu/você deveria estar? Ou, melhor ainda, que independentemente dos caminhos tomados até esse ponto é sempre possível corrigir a rota porque existe alguém que conhece a história toda? Qualquer uma das abordagens parece válida. Não é difícil encontrar personagens bíblicos que não tinham a menor noção do que estava se passando com eles, a não ser a certeza de que havia um Deus cuidando da história. A lista desses personagens é imensa, mas tome-se o exemplo de Rute, a moabita. Rute casou-se com um estrangeiro, ficou viúva, mas decidiu acompanhar sua sogra que voltava para Belém, sua terra natal. A decisão foi tomada com base numa das poucas certezas que Rute tinha – o amor por Noemi, sua sogra. Em terra estrangeira, Rute trabalhou como catadora, vivendo dos restos da colheita de outros. Mulher, imigrante, viúva e pobre, é difícil imaginar que Rute se enxergava “no lugar certo”. O detalhe, no entanto, é que o amor de Rute por Noemi não limitou-se às esferas relacionais entre duas pessoas. Foi além. Rute havia decidido participar da história do povo e do Deus de Noemi. O engajamento com essa nova narrativa foi o caminho para sua própria benção.
Moral da história: a vida no mundo do trabalho é dura e na maioria das vezes a única alternativa é reduzir danos. Mas isso não significa que o trabalho não tem sentido. Se formos capazes de identificar as histórias das quais fazemos parte e formos sábios para escolher as narrativas com as quais nos engajamos, poderemos encontrar a felicidade que Alexandre Teixeira e cada um de nós está procurando. Contudo, uma releitura de Eclesiastes 12:1-8 pode ser útil para fazer-nos guardar o conselho do sábio sobre a aplicação dos nossos esforços: Lembre-se do seu Criador enquanto você ainda tem energia, não espere pelos dias em que você não poderá mais desempenhar um papel relevante porque faltam-lhe forças ou recursos. Você só tem uma vida, essa é a sua oportunidade que lhe foi dada. No contexto da grande narrativa da vida, que é maior que todos nós, o ditado popular “cavalo encilhado não passa duas vezes” ganha novo significado.