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O cristão e o pobre


Se o capitalismo apresenta ao cristão o paradoxo de ser um eficiente sistema para a melhoria de vida da média geral da população e respeito ao indivíduo ao passo em que contribui justamente para a secularização e monetarização de nossos valores internos, sobre a relação do cristão com o pobre não deve pairar contrassenso algum. Claramente, a ética bíblica vê no devido tratamento ao necessitado comumente presente a nossa volta algo muito importante. Tudo começa porque o próprio Deus é afrontado pela injustiça humana. Eugene Peterson em sua A Mensagem parafraseia Provérbios 14:31 da seguinte maneira: “Quem explora o necessitado insulta o Criador, mas quem é bondoso para com o pobre honra a Deus”. Além disso, como bem lembra o professor do Departamento de História da Connecticut State University, Glenn Sunshine, tal insulto, segundo a ética apresentada ao antigo Israel, resultaria em punição divina: “Ao longo do Antigo Testamento, Deus adverte contra os maus-tratos ao pobre, à viúva, ao órfão e ao estrangeiro, e promete julgar aqueles que abusam deles”.

A partir da lista anterior emerge uma questão. Para quem a ética monoteísta israelita – e herdada pelos cristãos – requer proteção especial, afinal? Embora na maioria dos casos a palavra “pobre” no texto bíblico reflita necessidades visíveis (fome, nudez, falta de moradia, etc.), ela normalmente vem acompanhada de um amplo sentido de falta de poder, de relacionamentos ou de acesso a redes de proteção, o que torna o pobre ainda mais vulnerável. Talvez, ninguém incorpore tão explicitamente essas marcas de vulnerabilidade nas culturas do Antigo Oriente Próximo como a viúva, o órfão e o estrangeiro. “Homens (adultos), é claro, dominavam essas economias. Estrangeiros não podiam ter terras e, portanto, não tinham acesso aos meios de produção na sociedade agrícola do antigo Israel”, realça o Frei Leslie Hoppe, PhD em estudos do Antigo Testamento. Analisando o Livro da Aliança (Exôdo 21 a 23), o Deus que apresentou-se a Moisés promete duro julgamento contra os que maltratarem e oprimirem o estrangeiro, prejudicarem viúvas e órfãos, ou tirarem vantagem econômica do necessitado.

Sagrados e nunca revogados para israelitas e cristãos, os textos que dizem respeito ao trato para com aqueles em privação material, contudo, não cometem a ingenuidade de afirmar que todo desprovido é sem culpa de sua condição e nem sugerem a pobreza como virtude absoluta. Provérbios 28:3, por exemplo, censura aquele que, tendo sido pobre, enriquece e passa a explorar outros pobres. O mesmo livro traz a máxima de que beberrões, glutões e preguiçosos empobrecerão (21:23). E até os tolos que perseguem dinheiro fácil, projetos mirabolantes (28:19) ou os invejosos (28:22) são condenados à miséria pelo conjunto proverbial. Em suma, pobreza causada por ociosidade voluntária jamais é protegida e muito menos estimulada pela ética bíblica.

Tampouco parece acertada a afirmação da Teologia da Libertação de que Deus tem preferência pelo pobre. Levítico 19:15 nos ensina uma das demandas éticas de Deus ao seu povo: “Não cometam injustiça num julgamento; não favoreçam os pobres, nem procurem agradar os grandes, mas julguem o seu próximo com justiça”. Sobre esse texto, Glenn Sunshine comenta em seu artigo Who are the poor? (Quem são os pobres?) que “a preocupação de Deus é com a retidão e com a justiça, mas esse verso nos diz que justiça não significa ser parcial para o pobre, ao contrário do que muitos defensores da justiça social argumentam. Justiça significa julgar honestamente, de acordo com a lei e com base na verdade, sem levar em conta classe social. E é precisamente por isso que o rico é condenado nas Escrituras. No nosso mundo caído, o rico e o poderoso tem historicamente tirado vantagem do seu poder para ampliar suas regalias às custas do pobre e fraco – as viúvas, órfãos e estrangeiros, que estão sob proteção especial na Lei Mosaica por causa de sua vulnerabilidade”.

Uma ética a partir das Escrituras deve, primeiramente, emergir da cosmovisão que os primeiros receptores dos textos tinham acerca da realidade. Realidade essa que, segundo os israelitas, advinha do caráter e da vontade do Deus-criador. Para eles, o povo deveria emular as ações e caminhos de Deus. Em outras palavras, o comportamento ético de Israel deveria ser coerente e responder ao que Deus era e tinha feito por eles. Se Ele muitas vezes libertou o povo de suas vulnerabilidades como prova de amor, compaixão e fidelidade, logo, a mesma justiça e misericórdia deveria estar refletida nas relações dos israelitas para com outros fragilizados. Atuar pela proteção dos muitos tipos de vulneráveis, em último lugar, pode ser sustentado pelo que chamaremos de argumento da empatia. Há uma fórmula repetida nas orientações éticas a Israel. Eles não deveriam oprimir o estrangeiro em suas terras, pois eles mesmos “foram estrangeiros no Egito”. E não negariam justiça aos fracos ou tomariam penhor dos necessitados, mas deveriam lembrar que “foram escravos no Egito”. A fórmula apela para a memória do status prévio do povo para, assim, gerar um sentimento de consideração pelo que o outro está experimentando.

Conclui-se que a questão do pobre não se resume ao famoso e proverbial texto da novelista inglesa Anne Thackeray Ritchie sobre ensinar a pescar ser medida bem mais duradoura do que simplesmente dar o peixe a alguém. Acontece que há casos em que, acometidos pela injustiça ou pela imponderável vicissitude, o pobre, a viúva, o órfão e o estrangeiro precisam mesmo é de assistência. Perceber os limites entre a necessidade e a ociosidade requer sabedoria e, sobretudo, empatia. Aquele que já esteve na situação do outro ou ao menos tem a humildade para imaginar-se nela saberá as diferenças. Jesus andou com pescadores que sabiam pescar e ainda assim entendeu quando tinha que dar peixe a eles.


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