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O caos político e a esperança de João


Se nos parece coerente sugerir que a primeira ação política numa perspectiva cristã em meio ao caos político deve ser a de refletir sobre o lamento do apóstolo João descrito no livro de Apocalipse, haveria um segundo passo? Apesar de a escola do lamento ser importante, a frustração com projetos humanos não pode produzir um gueto de ressentidos, sem qualquer envolvimento com os problemas ao seu redor. Contudo, se a fé cristã diz que Jesus trará uma liderança definitiva com seu retorno, por que então tentar influenciar questões sociais e políticas aqui e agora? A sequência de Apocalipse 5 nos traz diretrizes sobre esse aspecto.

Nesse trecho, o pranto de João diante do rolo que não pode ser aberto é interrompido pela visão de um “cordeiro que parecia ter estado morto” (Ap. 5:6). A inusitada figura do cordeiro passa a descrever Jesus Cristo pelo resto do Apocalipse. Além disso, os cristãos da narrativa são descritos como aqueles que “seguem o Cordeiro por onde quer que ele vá” (Ap. 14:4). O símbolo do cordeiro, então, não apenas caracteriza Aquele que recebe o reinado nos céus e no futuro, mas torna-se o modelo de atuação pública de cristãos na Terra e no presente.

Duas características do Cordeiro podem contribuir para nossas questões políticas e sociais. Primeiro, o símbolo do Cordeiro é o oposto de qualquer tendência de coerção. A figura empregada por João sugere brandura, e aparente impotência, no meio das bestas, dragões e serpentes do Apocalipse. Sua principal característica é uma ferida exposta de morte – uma explícita antipropaganda, marca de sua vulnerabilidade entre os discursos de poder. Tal modelo rechaça qualquer bandeira de imposição de um ideal cristão na política, seja por meio da intimidação, violência ou manipulação de informação. Em contraste, o Reino de Deus é estabelecido pelo sofrimento voluntário do Cordeiro nos céus (Ap. 4-5) e dos Seus seguidores na Terra (Ap. 6-21).

Tal postura não implica, no entanto, busca por rejeição e perseguição gratuita. A comunidade do Cordeiro não é masoquista. Contudo, para o apóstolo João está claro que a característica cristã de denunciar falsos messias políticos certamente trará adversários. É uma questão de tempo para que quem não se vende aos desejos de veneração partidária seja considerado inútil ou mesmo uma ameaça. Neste cenário, João alerta para os perigos, tanto da covardia – retrair o testemunho da soberania do Cordeiro de modo a evitar controvérsia – quanto de assimilar os métodos de Roma para vencer Roma – assumir a relação de causa e efeito da política coerciva dos homens para promover o “bem” maior. Como o Cordeiro, os cristãos vencem o Dragão por meio da fidelidade em meio à perseguição que segue sua mensagem e sua inutilidade como massa de manobra (Ap. 12:11). Nas palavras do professor emérito de Teologia da Duke University, Stanley Hauerwas, “como cristãos, devemos sustentar diariamente que a paz não é algo a ser alcançado por nosso poder. Pelo contrário, a paz é um dom de Deus que vem apenas por nossa permanência como uma comunidade formada ao redor de um salvador crucificado – um salvador que nos ensina como ser serenos em um mundo em rebelião contra o seu verdadeiro Senhor”.

A segunda característica do Cordeiro é a capacidade transformadora do seu “testemunho”. O que é uma testemunha, senão alguém que carrega uma mensagem recebida por experiência em primeira mão? Apenas aqueles que encontram o Cordeiro com João em Apocalipse 5 podem, em meio ao burburinho político, ecoar a canção: “Digno é o Cordeiro que foi morto, de receber poder, riqueza, sabedoria, força, honra, glória e louvor!” (Ap. 5:12) O propósito do Apocalipse é formar um grupo que, ao contemplar o Cordeiro, situa os papéis dos poderes políticos dentro da narrativa cristã, não o oposto. Assim, além de afirmar Jesus como o verdadeiro César – que é a maneira como a expressão “Senhor” soaria aos ouvidos de um cidadão romano – a igreja atua como se tal regimento fosse iminente. “O testemunho de Jesus é o espírito da profecia” (Ap. 19:10). Desse modo, os cristãos são levados da inércia rumo ao sacrifício voluntário dentro da cultura onde se encontram.

Um caso serve para ilustrar tal proposta. No seu livro O Crescimento do Cristianismo: um sociólogo reconsidera a história, o professor da Universidade de Washington, Rodney Stark, relata o impacto da comunidade cristã por meio da sua reação às epidemias que assolaram o império romano durante os três primeiros séculos. Ao invés de abandonar as cidades infectadas, o minoritário “movimento de Jesus” permaneceu amparando enfermos e familiares abandonados pelos governantes romanos, os quais entendiam que sua própria sobrevivência era necessária para a perpetuação da identidade nacional. Nesses incidentes, os cristãos foram amplamente ridicularizados pelas elites políticas e muitos perderam suas vidas nas epidemias. Para Stark, tal prática cristã tinha um fundamento ideológico: a promessa da ressurreição para cristãos, assegurada pela ressurreição de Jesus Cristo. O “desperdício” da vida em favor do outro não era definitivo, ainda que César dissesse o contrário. Imersos na tradição e liturgia cristãs, a igreja não acreditava estar agindo revolucionariamente, mas simplesmente ecoando a sua experiência diante do “Cordeiro que foi morto” – e ressurgiu. Ironicamente, por colocar as vozes da liderança política em segundo plano, esses cristãos tornaram-se melhores cidadãos. Como brasileiros, talvez tenhamos que aprender sobre o modelo do Cordeiro em meio às nossas próprias epidemias.


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