500 anos de Reforma Protestante: celebrar ou lamentar?

A Dieta foi aberta, o império estava reunido na sala e o jovem imperador não sabia o que fazer. De um lado, os ferrenhos apoiadores daquele polêmico monge de Wittenberg insistiam que ele não poderia ser banido do império assim, sem antes ser ouvido naquela Dieta. O povo faria revolta. De outro, poderosos de Roma insistiam que o tal monge era um herege já devidamente excomungado. Ouvi-lo seria desafiar o papa! Era janeiro de 1521, e dietas imperiais como aquela, que reuniam bispos e governantes de todo o império para tratar de diversas questões, poderiam durar meses. E já estava mais do que na hora de resolver a "questão Lutero".
O imperador Carlos V finalmente decidiu: nem um, nem outro. Convocou Martinho Lutero para a Dieta que ainda estava ocorrendo na cidade de Worms. Não para que fosse ouvido, como queriam seus apoiadores; nem para que fosse imediatamente banido, como queriam seus acusadores. Mas, para que tão somente ele renegasse seus escritos. Lutero, então com trinta e sete anos de idade, ponderou que aquela era a sua chance de receber das duas, uma: apoio ainda maior ou o seu próprio martírio. Corajosamente, antecipando um debate frutífero em qualquer uma das situações, Lutero decidiu ir.
Mas não foi sozinho. Deixando a pequena Wittenberg, ele dirigiu-se à cidade de Worms com uma delegação de alunos, colegas, carros e cavalos, como um Cristo fazendo sua entrada triunfal numa outra Jerusalém. Por onde passava, o povo subia em muros e telhados para ver o famoso monge passar. Tanto movimento faria qualquer um perguntar o que ele escrevera de tão polêmico e que lhe trouxera tanto apoio afinal.
"Você é o autor desses escritos publicados em seu nome?", pergunta o porta-voz do imperador a Lutero, já em Worms, diante de uma pilha de livros com seu nome sobre uma mesa. Fechados numa sala com delegados, governadores e o próprio imperador, Lutero confirma autoria e ouve, surpreso, a segunda e última pergunta: "Você irá renegar esses escritos?" Pelo jeito, não haveria debate algum.
Ele pediu tempo para responder e o imperador concedeu-lhe vinte e quatro horas. No dia seguinte, dia 18 de Abril de 1521, vestido com seu hábito de monge, Lutero então proferiu, diante do imperador e de todos os mandatários presentes, o seu discurso: "A menos que eu seja convencido pelas Escrituras ou pela pura razão, não aceito a autoridade dos papas e concílios, pois eles se contradizem uns aos outros. Minha consciência está cativa à Palavra de Deus. Eu não posso e não irei renegar nada, pois não é certo e nem seguro ir contra a consciência. Deus me ajude. Amém." O imperador Carlos V também já sabia a sua posição. Em vinte e um dias, Lutero foi banido do império.
Mas o que ele havia escrito afinal? E o que isso nos interessa? Três anos antes, em Outubro de 1517, após o papa haver ordenado que cartas de indulgência – que concediam perdão de pecados aos seus compradores – fossem vendidas para levantar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, Lutero escreveu suas 95 teses e as postou na porta da igreja em Wittenberg. Duas teses bastam aqui. "Tese 50: Os cristãos devem ser ensinados que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, ele preferiria que a Basílica de São Pedro fosse reduzida a cinzas, a construi-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas". "Tese 52: É vã a confiança na salvação por meio de cartas de indulgências, ainda que o comissário ou o próprio papa desse a sua alma como garantia". As teses eram um ataque às indulgências, claro, mas também eram um ataque ao papa. Sem que Lutero soubesse, seus simpatizantes traduziram essas palavras do elitizado latim para o alemão mais popular, e as distribuíram pelo país. E sem que nenhum deles soubesse ou pudesse sequer imaginar, a pena de um monge obscuro, na porta de uma catedral da pobre e pequena Wittenberg iniciaria o movimento que mudaria o rumo da Igreja e da história do Ocidente, e que seria comemorado (e lamentado) quinhentos anos no futuro: a Reforma Protestante.
E, novamente, que isso nos interessa? Ora, outra vez estamos como o jovem Carlos V: diante de Lutero. Seus apoiadores no mundo inteiro celebraram a Reforma Protestante no ano que passou. Eles exaltam o resgate da tradição perdida pela Igreja, e o lugar de honra às Escrituras, e a doutrina da salvação pela graça e pela fé somente, e a renovação do evangelismo mundial, e as contribuições ao Estado laico, e o que mais? Faltaria tempo para falar sobre a tradução da Bíblia para mais de 600 línguas (do Novo Testamento, para mais de 1400!), e dos movimentos nacionais de alfabetização, da redenção do casamento e do trabalho secular (em detrimento do celibato e do monasticismo), coisas das quais o mundo não era, ou não se lembrava, ser digno.
Mas os que lamentam a Reforma Protestante existem, e são muitos. Eles acusam a Reforma de haver desprezado a tradição, de ter dessacralizado o sagrado e, com isso, secularizado o mundo ocidental. Culpam-na por romper com a união da Igreja, de permitir o caos na interpretação bíblica e acusam-na ainda de ser a verdadeira responsável, mesmo que sem a intenção, pelo individualismo moderno e consequente expansão do ateísmo.
E agora, passadas as euforias comemorativas dos 500 anos da Reforma Protestante, qual deve ser nossa sóbria reflexão? Devemos celebrar ou lamentar? Promover ou reparar? Onde está a razão acerca da Reforma? Há o que dizer sobre as heranças da Reforma Protestante no Brasil? Eis a proposta: uma forma de honrar a centelha de Lutero é responder – ainda que parcialmente – a essas perguntas em textos seguintes no Claraboia Brasileira. Analisar as reformas, no plural mesmo. Questionar e relativizar qualquer traço de storytelling na construção narrativa das porções luterana e calvinista dessa história. Salientar como a visão reformada impactou a forma como lemos a Bíblia. Esclarecer como pode um movimento religioso ser acusado de gerar secularismo. Expor os traços das reformas no mundo do trabalho. Há muito o que estudar e elucidar. Deus nos ajude. Amém.

Jubiracy Filho tem experiência em vendas, foi pastor no Nordeste do Brasil e prepara-se para ser escritor de ficção. Está cursando o Master of Arts, com concentração em Christianity and Arts, no Regent College.