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500 anos de Reforma Protestante: Reforma ou reformas?


Martin Luther as an Augustinian Monk (1520), Lucas Cranach

O curso da história às vezes muda instantaneamente, de maneira dramática, num piscar de olhos. Em outros casos, ainda que momentos decisivos sejam destacáveis, a mudança é um processo longo, cheio de nuances e por vezes imperceptível mesmo para aqueles que viveram a transformação in loco. Para celebrar a Reforma Protestante em 2017, além de tratá-la como um evento, um lugar comum na reafirmação dessa memória construída foi repetir a fórmula do “o que”, “quem”, “quando” e “onde”. O “quando” era o 31 de outubro de 1517. O “onde” era a Universidade de Wittenberg, na Saxônia, então uma escola nova e desconhecida. Um monge obscuro chamado Martinho Lutero é o nosso “quem”. E “o que” ele fez? Cometeu um simples — nunca simplório — ato de desafio, questionando os ensinamentos da igreja romana acerca do perdão dos pecados. Então, supostamente, essa ação singular fez iniciar uma nova era entre os cristãos.

Tal jeito de contar essa história e construir memória sobre esse evento é um prato cheio para os biógrafos — do cinema, especialmente — e para os contadores de história (em geral, não-historiadores) que precisam do gênero épico, e de seus heróis, para sustentar seus edifícios institucionais. Seja para o cinema ou para o orgulhoso protestante, eis uma cena maravilhosa: um monge irado, que acabara de cair em si no que diz respeito à verdadeira fé cristã, de martelo e uma certa papelada nas mãos, cruzando uma praça pública e com pregos cravando seu protesto contra o status quo, contra a falsa fé, contra o pensamento tutelado, derrubando a tradição morta e desmantelando a ilusória unidade da cristandade. E tudo isso num golpe só. Ou melhor, em 95 golpes. Noventa e cinco curtos e insolentes parágrafos, em linguagem acessível (porém, sem intenções tão populares como se imagina, já que as teses foram escritas em latim.) foram o suficiente para alterar o curso da história do Ocidente.

Talvez, ao chegar até aqui, você pense que o objetivo principal dessas palavras já lidas é o de desconstruir, desmerecer, diminuir e até ridicularizar Lutero, seus feitos e seus herdeiros. Pois, se é preciso, que se diga claramente: Não, não é isso! Pelo contrário, aqui se reconhece a providência sobre o homem Martinho Lutero — nem santo, nem herói — e as muitas graças que seu legado deixou para as comunidades cristãs pelos confins do mundo até cinco séculos depois. Mas, é preciso ter a frieza leal e humilde para honrar os muitos anônimos e também os nem tão anônimos e nem tão heroicizados que fizeram parte do espírito de uma época.

Fazer da Reforma protestante uma narrativa épica, em vez de esforçar-se nos menos atrativos terrenos dos ensaios, da história social, das formalidades dos documentos pode, no fim das contas, ser uma péssima estratégia de propaganda. Os entusiastas de uma mentalidade secularizada, cada vez mais desconfiada e supostamente neutra, somados por seus parentes mais radicais, os ateístas-missionários, querem mesmo é lançar a Reforma e suas contribuições para as civilizações modernas no mundo das fábulas. Por isso, é mais que hora para reconhecer que uma coincidência de fatos e atos intempestivos, de fundo espiritual e emocional, não dão conta de tamanha mudança causada no mundo. O espírito e as ideias que pairavam sobre aquele tempo não brotaram apenas do coração de um convertido monge. É importante ato de confissão de fé dizer que As Reformas são resultado de algo maior operando no campo das crenças cristãs.

O historiador cubano e professor da Universidade de Yale, Carlos Eire, prefacia o seu imponente livro Reformations: The Early Modern World, 1450-1650 assim: “Na verdade, o caminho tinha sido preparado para Martinho Lutero ao longo de várias gerações, por incontáveis indivíduos e forças impessoais, e ele foi mais um produto da mudança do que um agente dela”. Em outras palavras, Lutero lançou uma centelha num palheiro que já fora embebido em combustível.

Reforma ou Reformas? Singular ou plural não é só uma questão gramatical, mas, assim, diferencia-se a forma como lidamos com esses termos. Um mínimo contato com a história social nos mostra que múltiplos movimentos pipocaram em diferentes lugares e circunstâncias, questionando a autoridade de uma igreja centralizada. Houve até movimentos de reforma dentro daquela poderosa instituição, os quais não resultaram em fragmentação permanente. O conceito de que as reformas foram mais um processo do que um evento nos faz investigar mais sobre o estágio final da igreja cristã medieval, sobre como deu-se a transição para uma mentalidade humanista na Europa, sobre os novos interesses nacionais que emergiram com os novos Estados Modernos e quais condições tornaram tudo isso possível.

Finalmente, é importante conseguir relativizar o termo Reforma (com “R” maiúsculo e no singular). “O nome para esse momento transicional na história mudou ao longo dos anos. (...) Implícito nesta designação está o julgamento de que algo corrupto foi reformado e melhorado. Mais que isso, o nome singular e maiúsculo dado a esse período histórico sugere que esse evento foi o derradeiro, um passo definitivo na direção certa: não foi uma reforma, mas A Reforma”, critica Eire. Da mesma forma, a contrarreforma nunca foi vista como uma série de mudanças no seio da própria igreja romana. Qualquer reorganização católica tem sido interpretada pelo senso comum à luz da historiografia alemã do século XIX: tudo não passava de mera reação Católica aos avanços protestantes.

Para evitar uma — sempre perigosa — compreensão triunfalista sobre suas próprias realizações, seria benéfico para a igreja observar as reformas como um importante conjunto de ajustes e mudanças, mas dentro de toda a sua história. A ideia de que o verdadeiro cristianismo foi fundado por Jesus no século I, espalhado pelos apóstolos, conservado pela igreja por alguns séculos e depois afogou-se num mar de imoralidade e corrupção até que os reformadores o ressuscitassem não é apenas um desperdício de muitas bênçãos e sabedoria prévia, mas é, sobretudo, um equívoco. É frutífero quando a igreja aprende como comemorar corretamente as iniciativas de autonomia e as correções postas para evitar maus ensinamentos, testemunhos negativos e sua própria irrelevância. Mas também é proveitoso aprender com seus próprios erros sobre divisões, guerras evitáveis, fragmentação e perseguição.


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